quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Terceiro Capítulo:“Cinzas do êxodo”


- Como fora a viagem Vicente?- o saudava Mercedes.
- Correu tudo em ordem santa, e as coisas com a preta?
- Ah – uma vibração sondou-lhe o ventre -...estamos nos dando muito bem agora...- Mercedes deita o olhar ao assoalho.
- Ah minha pétala aveludada, chegue cá! – Vicente aproxima-se de sua esposa e se põe a beijá-la e fazer-lhe carícias.
Após um primeiro instante Mercedesse enoja, e após sentir o gosto de seu homem, cede aos seus verdadeiros desejos, rompe o beijo e diz:
- Perdão, estou mui cansada, irei deitar-me...
Vicente, desanimado e com baixo vigor, pede para que o menino escravo volte, sele o cavalo, pois o homem iria caçar garças.
Mercedes, desesperada por uma força surreal, procura Antônia apressada, porém não a acha, a casa estava vazia.Em um ato veloz vaipara fora da casa e em gênese de gritar a escrava, Mercedes a vê de longe, colhendo limões em meio às folhagens.
A escrava, desapercebida em meio ao trabalho, cortava galhos do limoeiro com o seu punhal e logo após recolhia os frutos, apenas se deu conta do abraço, quando o recebeu de sua dona, que a leva a se esconder entre os recantos  verdes e sublimes. Aquele beijo ardente era o palco da brisa suave e doce de toda aquela natureza. O cesto de limões caíra ao chão. Mercedes afogava seus lábios no pescoço escuro da mulher, sentindo o seu cheiro de frutos e café. Ambas estavam vivendo, naquele momento, uma era de idílios e astros. Seus ouvidos estavam recobertos de gozo e uma serenidade tão natural, que as faziam se sentir frutos da criação. Essa paz se fez finita quando, ao desencostar o corpo de Mercedes, Antônia caíra sobre o solo escuro, que começava a inundar-se com o líquido escarlate do corpo da negra.
Mercedes, ao voltar de seu frenesi num salto até a negra, se deita sobre essa, derramando o seu estado de choque em suas pálpebras negras e úmidas.
Ao levantar-se, perdendo as forças pelo corpo, depara-se com Vicente, segurando sua espingarda, rente aos seus olhos de fúria, que agora fitavam a esposa com desprezo.
Mercedes, abandonando sua razão depois de pensar em seu destino, apanha o punhal de Antônia, enfia-o na garganta, rompendo-lhe em sangue ao cair pesada ao chão sobre o corpo da negra.
O limão na grama, já começara a sofrer pela natureza.
Mercedes morrera...



quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Segundo Capítulo:“Pecado em Flama”


O piso de madeira entoava passadas contínuas, tendo, ao término do ciclo, um rangido em suas entranhas. Em cima deste, Antônia vagava em estado de pânico de um lado para o outro, seus pensamentos estavam confusos, ela ordenava a razão a ter fuga de tudo aquilo, porém a sua mente já havia se rompido com a descoberta de uma ânsia cheia de mácula.
Cravada em uma de suas intermináveis voltas ao redor de sua cama, ela estaca todo o seu corpo, e num arrepio curioso que lhe corta a nuca, a maçaneta do quarto range, sofre e acaba se abrindo. Na corrente de ar que invadiu os aposentos de Antônia, encontrou-se o odor floral de sua dona. Mercedes estava ofegante, com a boca semiaberta levou os olhos a escrava, que parecia estar diante de algo mortífero.
Antônia, descendente de quenianos, mulata forte e de cabelos marrons, sempre fora submissa e obediente, porém, no dia em que Mercedes abrira a porta de seu quarto, esta brotou de uma maneira louvável, como um lírio que floresce antes de nascer ou até mesmo um ser escrupuloso rumo à morte.
As duas se entrelaçaram num redemoinho de êxtase, beijaram-se com ardência, queimava-se o lugar mais obscuro de suas almas, sentiram-se numa metamorfose idílica, tornaram-se uma só com o suor do pecado da carne, eram estrelas na terra refletindo suas luzes uma a outra, eram criadoras do universo, deias alumiadas pela flama da paixão. Tiveram o seu tempo de amor consumado em algo irreal, que nenhum escritor poderia relatar.
No fim da tarde, as duas, deitadas com seus corpos nus, acariciavam-se dizendo palavras da mente, mostravam um lado uma a outra nunca descoberto nem por elas mesmo.
No momento em que os olhos de Antônia observavam as auréolas burguesas de dona Mercedes, o marido desta bate a porta da entrada:
- Mercedes, cheguei minha flor!­­ - virou-se ao ajudante - Pretinho! Vá sacar a sela do corcel...


terça-feira, 25 de junho de 2013

Primeiro Capítulo: "Brasas ao Vento"


Nas paredes desbotadas e azuis, escorria pelos caminhos desta uma gota d’água, provida da chuva da noite anterior, ela corria junto à umidade e soltava-se rumo ao chão de terra que a absorvia. Seropédica era uma vila serena que expirava a natureza em seus ares. Os campos pela manhã abandonados à melancolia pareciam não se frutificar. Os pássaros cantavam, outros omitiam sua liberdade, nenhum estava morto. Seropédica acordara...
- Antônia, o café já está à mesa?
A escrava vira-se e em voz cansada responde-lhe:
- Oh, dona Mercedes, já está na mesa sim.
Mercedes, herdeira das terras de Seropédica, com um olhar vago, se desloca à sala-de-jantar. Senta-se na cadeira estofada com estampas lisas e revestida de veludo. Com cabelos penteados, face alva e olhos claros, esta nem concede à escrava uma palavra de boa fé.
Ao primeiro gole, Mercedes depara-se com um líquido muitíssimo quente, isso a faz repreender a escrava:
- Antônia! Sua crioula dos diabos, como me fizera algo tão infernal, faça o favor de... - num ímpeto de ira, o café acaba se espatifando no colo da senhora. - Sua preta! Olha o que me fizeste! Não serves para nada! Trate de me arrumar novas vestimentas.
E num gesto rápido, Mercedes dirigiu-se ao quarto para se limpar. Repara que, ao chegar no aposento, seu gato estava em devaneios sobre a penteadeira, o pelo liso e negro se roçava à beira do espelho. Mercedes o enxota, fazendo-o correr e se acomodar junto ao pé da cama. Com seus cabelos exímios, a filha do Conde Vicente senta-se à frente da enorme penteadeira, serra os olhos por instinto e leva as mãos aos fios negros e brilhantes, como os do gato, que estava a invejá-la.
Quando a escrava Antônia adentrara ao quarto, carregava consigo panos e vestimentas limpas e secas; Mercedes estava com a roupa de baixo. Um silêncio se fez durante a longa troca de olhares entre criada e senhora, e logo após Mercedes o rompe:
- Oh pretinha dos infernos! Será que é pedir demais para que você veja-me horrenda neste estado. Corra, ajude-me.
A negra encabulada em seu vestido maltrapilho apressa-se até Mercedes e se põe a umedecer os panos e limpá-la.
O primeiro toque entre as duas, depois de quatro anos de servidão, fez Mercedes arrepiar-se, talvez a água fria tenha lhe proporcionado isso.
Antônia sem ao menos pedir licença à dona, levanta-lhe a vestimenta de banho e começa a enxugá-la com as toalhas umedecidas. Mercedes pensava em chamar-lhe a atenção, porém sentia-se estranhamente bem com a escrava lhe tocando ao pé dos seios.
Antônia percebera que Mercedes voltava o pescoço para trás como se estivesse em começo de delírio. A escrava, com uma mão sobre o estômago da dona, iniciou a colocar a outra sobre o ombro dessa. Estes estavam nus e macios, sendo admirados pela coloração extremamente clara, com ares de pureza. Numa ação rápida e ao mesmo tempo revestida de impotência, Mercedes levanta-se e embebida de volúpia beija a escrava. Antônia, carregada de impulsos paradoxais, sem saber o que era certo ou errado, abre a boca pensando em relutar e dizer-lhe que não era bom que fizessem aquilo, porém, nem para isso teve forças, e numa saída violenta e acanhada, se pôs a correr quarto a fora.




Resenha de “Arde Encanto”

Num dia comum, na pequena cidade de Seropédica, localizada no Rio de Janeiro, a vida de duas mulheres, completamente opostas, pode mudar radicalmente pela relação trabalhista e amorosa. Mercedes, mulher burguesa, filha de um dos maiores condes do Brasil, conhece um desejo novo que se revelara somente com sua escrava Antônia, negra queniana que sempre vivera a trabalhar na casa de seus donos. Uma paixão pode brotar tão rápido quanto o fim desta. Uma história de encanto com uma ardência sobrenatural, duas mulheres presas a um sentimento libertador que incendeia suas memórias mais profundas.